18.3.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 18-03-2024

À atenção do mundo: nunca gostei muito de ti. Suportei-te na medida em que tu me suportaste: pouco e na condição de me pôr na alheta rapidamente. É mais fácil ser eu a desaparecer do que tu, não é? É, claro. Para tu desapareceres eu teria de enterrar a cabeça na areia, se possível na caixa do gato. A qual não foi mudada há tanto tempo que já nem ele lá vai. Prefiro ter-te à minha frente. Luta de igual para igual: eu contra o mundo, o mundo contra mim.

Parece uma luta desigual, mas não é. O mundo fragmenta-se em bocadinhos. Já eu enfrento-o inteiro. Para ganhar basta-me escolher o fragmento contra o qual vou lutar hoje. Antes do jantar. Depois será provavelmente outro. Sun Tzu teria decerto aprovado esta estratégia: divide o exército inimigo em pedaços mais pequenos e depois dizima cada uma dessas partes. Se possível depois do jantar, estarás mais propenso à reflexão. 

As guerras ganham-se assim: muita reflexão e o mínimo de acção. 

Podia ser pior

Aviso à navegação: pilotar um bote grosso é como conduzir um automóvel no mesmo estado.

Com uma vantagem: há menos botes grossos. O problema não é estar grosso. É não ter luz.

Enfim, tenho o telefone. Podia ser pior. Também podia não estar grosso. Podia ser muito pior.

Análise de risco

 1 - Variáveis

a) Vim para a dinghy dock mais longe de bordo porque o objectivo era fotografar o mangal;
b) Estou grosso, porque vim ao Boko beber pilas conadas;
c) Está noite e não tenho luz nenhuma, pelo que terei de fazer o trajecto sem luz no bote, coisa que execro.

2 - Conclusões

a) Terei de ir devagar;
b) Terei de me manter alerta;

Assim exposto, parece-me que posso ir para bordo.

Assim imposto, terei de ir para bordo.

O que se pode melhorar

Resultado: venho ao Boko beber Piñas Coladas (pilas conadas, diz uma amiga minha num dos melhores trocadilhos da língua portuguesa). Não é nem a melhor nem a pior piña colada da minha vida. Está algures pelo meio. Sou contra esta mania de procurar «o melhor de». Devemos satisfazermo-nos com o que temos, mesmo que não seja o melhor de, que é muito relativo. Quem quer sair com a mulher mais bonita do mundo? Eu não. Quem quer navegar no barco mais bonito do mundo? Eu sim. Quem quer o melhor cocktail do mundo ? Eu sim, se for um painkiller no Soggy Dollar bar. Eu sim, se for uma Piña Colda no Novo Bar Lisboa, em Palma. Eu sim, se for um Alexander no Procópio ou no Pavilhão Chinês em Lisboa. 

Devemos lutar contra a tentação do «melhor de», excepto se essa tentação se referir a nós próprios. Somos a única coisa que podemos melhorar. Tudo o resto não passa de uma passagem de modelos num filme de Pasolini.

Um viva aos maus feitios

Das coisas curiosas que nos acontecem nesta vida. J. tem uma péssima reputação aqui no burgo. Dele dizem que é competente e sabe o que faz, mas tem um feitio fdp. Hoje veio a bordo instalar o plotter novo. Dizer que foi adorável é insuficiente. Aprendi duas ou três coisas com ele e o plotter foi instalado em menos tempo do que preciso para o escrever. Pergunto-me quantas vezes o mau feitio dos outros não é uma resposta à nossa incapacidade de lidar com o «mau feitio». Devo dizer que esta reputação não é de hoje mas devo igualmente dizer que foi hoje que explodiu.

Ou então: os maus feitios atraem-se.

17.3.24

Inovações na área do marketing

"Eles" dizem que a mínima se fica pelos vinte e quatro mas a minha sensação térmica não passa dos dezanove ou vinte e tenho de me tapar. Vá lá que um lençol chega. Não me imagino com um cobertor por cima.

Por falar em sensação térmica: os media (não sei quais, não aprofundei) anunciam uma sensação térmica hoje no Rio de Janeiro de sessenta graus (tudo isto em Celsius, claro). A temperatura máxima foi de quarenta, coisa longe de ser rara naquela cidade. Os jornalistas - ou alguém por eles - foram buscar a sensação térmica,  porque lhes permite, pensam eles, aumentar a credibilidade e por conseguinte as vendas.

Não quero entrar muito em pormenores, mas para uma sensação térmica divergir em cinquenta por cento da temperatura real, sobretudo positivamente, é preciso que o "sensor" esteja duas horas à torreira do Sol, cheio de cobertores e com um bom anorak, coisa que a maioria das pessoas sensatas evita fazer.

Aqui chegado, ajudado pelo frio percebi tudo. Como toda a gente sabe, o quociente de inteligência é uma média com uma distribuição bastante regular de cada lado da curva. Os "órgãos de comunicação social", contudo, pensam que o lado esquerdo do espectro (o das inteligências inferiores a cem) tem mais gente do que o lado direito. Vai daí, começaram a dirigir as suas publicações para esse segmento do mercado. As vendas começaram a cair e os ditos "órgãos" (aspas porque é irónico, nas duas ocorrências) analisaram, pesquisaram e hey, presto, encontraram a solução. Basta contratar, para redigir as notícias, pessoas que tenham algo em comum com o segmento alvo.

Assim nascem "notícias" (aspas porque é uma piada) como a da sensação térmica de sessenta graus quando o termómetro marca quarenta.

Não tenho a certeza que resulte, pelo menos na imprensa escrita, passe o pleonasmo. Contrariamente a ver televisão, ler jornais é uma actividade tradicionalmente reservada a pessoas do lado direito do espectro. Mas que é uma experiência louvável é. Humana. E é também uma inovação na área do marketing. O bom velho Kottler deve estar a bater palmas. 

Em memória de Nuno Júdice

Em memória de Nuno Júdice, um haiku de Bashô:

"Oh! Anda ver
uma bola de neve
a arder."

16.3.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 16-03-2024

Ando com a pele sedenta de sol, essa é que é essa e é tanta a sede que não há sol que lhe chegue.

A manhã foi a trabalhar com o T. no bote e no forro do camarote de bombordo. À tarde ia todo lampeiro para o meu encontro com os ioles mas foi tudo anulado. Passo os pormenores porque não me apetece pensar nisso agora. Fiz algumas fotografias jeitosas da praia, mas a frustração, a raiva e o desânimo eram demasiado fortes e acabei por pegar no bote e ir a Sainte-Anne, aonde tomei banho, me enchi de sol e comi um gelado acompanhado por um rum (quando penso que daqui a uma semana estarei no Cláudio nem acredito). No regresso ainda fiz um desvio para ir ver as Salines mas este bote não é feito para isso e voltei para trás. 

As fotografias não ficaram más mas estou demasiado cansado para as escolher. O raio desta operação continua a consumir-me uma energia louca, apesar de estar praticamente convalescido. Mai-lo sol, claro e o trajecto no bote. Vou comer um bokit ao Liv e depois venho para bordo diluir-me nesta mistura de sono, noite e cansaço, mistura essa que me põe a dormir com uma facilidade da qual não chego sequer a aperceber-me.

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O objectivo é entregar o S. D. num brinco e é muito difícil explicar o gozo que me dá a antevisão dele a brilhar de limpo e de arrumado. Deve ser mais ou menos o equivalente do prazer que têm aqueles tipos que lavam os carros todas as semanas. Pu o do marido que leva a mulher à ópera e a imagina toda aprumada, maquilhada e linda.

Ou então é simplesmente brio. Fazer bem ou não fazer - pelo menos como objectivo porque isto da perfeição é só para os outros. A mim não saiu na rifa, essa crápula. O prémio que ganhei não é bem um prémio: é esforçar-me. Há gajos a quem tudo sai sempre bem e à primeira. Os semideuses do outro - devem de resto ser os mesmos do que os meus. Tudo semideuses. Eu não. Tenho de tentar, esforçar-me, apontar para um objectivo que nem sequer é muito ambicioso: fazer bem ou não fazer de todo.

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Mark, o dono ou gerente ou empregado a tempo mais do que completo do Liv é adorável. Está casa é cada vez mais a minha cantina, agora que perdi de todo a vontade e a capacidade de cozinhar. É perto do barco e foge à regra número um dos restaurantes na Martinica: se é mau é caro e se é bom é caríssimo. 

Caldos lexicais e civilização

Talvez a diferença entre a civilização e a falta dela seja puramente lexical. 

Na civilização,  sim é sim, não é não e talvez é talvez. Na sua ausência, tudo é um indefinível caldo de talvez. É preciso saber ler as vírgulas e os espaços entre as palavras; e muitas vezes nem isso é suficiente. 

15.3.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 15-03-2024

A Joan Armatrading diz que tem sorte porque pode passar por baixo de uma escada. Logo de seguida vem a Sandy Denny perguntar-me quem sabe para onde vai o tempo. Não tarda estará o Paul Simon mai-los diamantes nas solas dos sapatos. 

Não tenho resposta a nenhuma destas questões. Nunca experimentei passar debaixo de uma escada, não vá o diabo tecê-las; não sei para onde vai o tempo - nem quem o fez sabe, quanto mais eu; e não tenho diamantes em lado nenhum, muito menos nas solas dos sapatos. Não percebo nada destas listas do YouTube mas sei uma coisa: mais vale um minuto disto do que meia-hora de Eixo do Mal. Parece que é a duração do programa. Só ouvi talvez minuto e meio até o grilo falante misturar Milei e Ventura. Passo para a música e daí para Paul Simon. 

Há músicos assim, um bocadinho por cima da esfera da música. Começo a nomeá-los e são tantos que me pergunto se não serão esses a esfera da música. Ignoro: não sou musicólogo. A única coisa que sei de música é que alguma dela tem em mim o efeito contrário dos disparates que oiço na televisão quando tenho o azar de por lá passar.

Bom, isto precisa de um bemol. É verdade que por vezes me falta jeito para ouvir um dos intervenientes num programa chamado Guerra Fria. Mas o outro compensa largamente. Também gosto de ouvir o Ricardo Araújo Pereira. E o Ricardo Arroja, embora nunca me lembre de o ir ver.

Será que com esta lista posso obter a nacionalidade portuguesa?

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Oiço barra vejo o Graceland ao vivo. Adoro este disco do princípio ao fim, o fim não sendo aonde o disco termina. É muito depois. Este concerto marca provavelmente o fim do sonho pós-apartheid na África do Sul. A partir dali foi sempre a descer.

O Ocidente é a reserva intelectual do mundo. Intelectual e moral, apresso-me a esclarecer. Talvez devêssemos entabular uma vasta interrogação,  um vasto exame de consciência, como lhe chamam os católicos. Devíamos pôr os mitos de lado, por um momento, chamar os factos e debatê-los e falar deles.

É inevitável, quer queiremos quer não. Quanto mais cedo melhor.

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Um filho de trinta e cinco anos já não é bem um filho mas tão pouco é uma pessoa adulta de per se. É uma espécie de ser híbrido, metade feita por nós e metade feita por ele e um gajo nunca sabe de qual dessas metades deve estar mais orgulhoso.

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Das mudanças de status ao longo da vida: durante muito tempo o V. era meu irmão. Hoje, eu sou o irmão do V. Durante ainda mais tempo o T. era meu filho. Hoje sou eu o pai do T. 

Duas sortes. Muito pior é ter sido durante muito tempo filho do comandante Serpa e hoje não haver comandante Serpa. É uma das formas da solidão e a mais inultrapassável de todas. 

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PS - A sequência lógica de Graceland é o African Marketplace, de Dollar Brand (ainda se chamava assim). E tem Carlos Ward no sax.

O que os olhos viram

Quando olha para uma mulher, os olhos de Artur seguem um trajecto independente da sua vontade. É sempre o mesmo: mamas, olhos, pernas. A primeira vez que viu Helena, entre os olhos e as pernas olhou para o anelar da mão esquerda. Apercebeu-se imediatamente da anomalia, mas era tarde para a corrigir. O olhar é como as palavras. Não se pode desolhar aquilo que os olhos viram tal como não se pode desdizer aquilo que a boca pronunciou.

Não tinha aliança.

Daqui, dali e dacolá

Há pouco mais de meia dúzia de anos na Flórida descobri que sou europeu - do Mediterrâneo. Agora, na Martinica descubro que sou português. Terei de viver em Portugal para saber de onde sou?

13.3.24

Da fundamental questão da atracção ou falta dela entre iguais

A estupidez não me grama. Nada há que eu possa fazer a esse respeito, tanto mais que não tento sequer fazer-me apreciado por ela. [Adenda: não tento fazer-me apreciado por ninguém, desde que descobri que nem por mim o sou e essa descoberta já tem quase meia dúzia de dezenas de anos.]

Verdade seja dita: não é só a estupidez. As mulheres bonitas tão pouco me perseguem. Salvo algumas raras excepções, apresso-me a esclarecer. Já me saíram algumas na rifa. Aliás, agora que penso nisso, o mesmo se passa com as feias: não andam propriamente atrás de mim, resposta simétrica à minha atitude para com elas. (Há igualmente excepções, nos dois sentidos.)

Na verdade, passa-se com as mulheres o que se passa com o resto da humanidade: só as inteligentes vêem em mim qualquer coisa que as intriga. Dura pouco tempo, felizmente. Mandam-me passear rapidamente. Uma vez tentei namorar uma miúda burra que nem uma porta, só para ver, mas também não funcionou. Despedi-me dela ao fim de dois dias.

Também fiz várias combinações beleza / inteligência - não se excluem, qualquer idiota o sabe ou devia saber. O que varia são as proporções.

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Resultado ao fim deste longo périplo pela minha vida afectivo-intelectual: estou quase no ponto de partida. Avancei pouco nesta incessante pesquisa pelo sentido da vida que é a minha vai para mais de cinco décadas.

Porquê quase? Porquê pouco? Porque deixei de fora a amizade. Infelizmente nunca tive amigos idiotas, pelo que me é difícil fazer comparações. Mas já tive colegas de trabalho e contactos com pessoas menos dotadas intelectualmente. O que nos deixaria no ponto de partida, não tivesse eu uma pergunta a fazer: como vou explicar isto aos dois neurónios que me restam?

12.3.24

A forma do tempo e o tampo da mesa

As discussões em torno de a Terra ser plana aborrecem-me. Acho-as maçadoras e inúteis. É como discutir se o ar é verde, azul ou transparente. 

Em contrapartida, parece-me interessante discutir a forma do tempo. É esférico ou é plano? Tendo mais para a segunda alternativa. Se fosse uma bola, nós poderíamos percorrê-la sem fim. Ora toda a gente sabe que um dia o tempo acaba para cada um de nós, mesmo se continua para os demais. Isto só se pode explicar com um tempo chato como o tampo de uma mesa: percorrêmo-lo das mais variadas maneiras, cada um com a sua.

Um dia aproximamo-nos demasiado da borda e caímos. Os outros continuam as suas deambulações,  os seus errands, que linda palavra têm os ingleses. Mas para nós o tempo acabou. Caímos da mesa.

11.3.24

Falcatruas

Até amanhã, camaradas. O nosso tempo passou. Era ontem. Hoje a música é outra. Talvez a nossa volte amanhã, quem sabe? É pouco provável. O tempo anda às voltas, é verdade, mas essas voltas não se sobrepôem. Fazem uma espiral. Há quem pense que essa espiral sobe e quem diga o contrário: desce. Eu penso que ora sobe ora desce, como um pêndulo um bocadinho estonteado. Nem a gravidade consegue controlá-lo. O trajecto é uma mistura de gravidade, acaso, amor, dinheiro, ganância, engano, erro, incompetência, sonhos. O acaso é isso tudo posto numa misturadora. Não há maneira de o controlar, por muito que se ponha o peso numa das componentes. São como sabonetes, todas elas: pressionas e ela escapa-se. Já viste o que seria um futuro feito de sonhos? Ou de ganância? De incompetência?

Deixa o futuro em paz, homem. Entretém-te com o passado, finta o presente, chuta à baliza que não sabes aonde está. Talvez a bola a encontre, talvez não. O pêndulo. A espiral. Agarra as palavras como a Chavela Vargas agora faz, parece um guarda-redes a defender uma bola particularmente difícil, agarra-a contra o peito deitado no chão. E no último segundo a bola sai-lhe das mão e entra na baliza. As palavras encontram sempre o seu caminho, por muito bom que seja o guarda-redes. Até amanhã camaradas. O tempo passou. Não nos resta mais do que a memória, essa falcatrua.

Keith, j'arrête?

Faço parte daquele grupo de pessoas que prefere os Sun Bear Concerts ao Köln Concert. De um ponto de vista musical. Porque de um ponto de vista da vida, não é verdade. Isto se considerarmos, como considero, que a memória é a vida e que sem memória não há vida que nos valha. Ouvimos a música que vivemos e esta ambiguidade do verbo é soberba: vivemos no presente e vivemos no passado.

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 11-03-2024

A mercearia / libre service Lamon está para a vida no Marin como um salva-vidas para um navio de cruzeiro: serve para tudo, incluindo salvar vidas. É lá que compro os meus cigarros avulso (sessenta cêntimos cada contra cinquenta em Fort-de-France, a vida aqui é mais cara), raramente um gelado, de vez em quando uma garrafa de rum, de vinho ou de cerveja. Hoje comprei uma Adelscott, a cerveja chic do Marchand de Sable quando lá trabalhava. Não a consegui sequer acabar. E ainda há quem pense que no passado tudo era melhor. Hoje - deve ser a primeira Adel que bebo em trinta ou quarenta anos - perguntei-me como raio conseguia não só beber mas apreciar aquilo.

Sentei-me num banco do terminal marítimo a fumar um dos cigarros, beber a cerveja e olhar para o mar, coisa que evito geralmente fazer mais de doze horas por dia.

Há fundamentalmente duas coisas que dificultam muito a minha integração na economia portuguesa. Uma é a filosofia "isto chega". Não vou ao extremo de dizer que só o melhor chega mas penso que só o bom chega. A área de trabalho é o bom, não o assim-assim, o mais ou menos ou o mais barato. Escolhe-se o mais barato do bom, não o mais barato de tudo.

A outra é o "depois se vê". Não gosto do depois. Gosto das regras bem claras e explícitas antes do começo do jogo e não depois.

Por isso gosto tanto do norte do país. Está mais perto de mim e eu dele. Não fosse o tempo...

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A chuva continua. É exasperante. Antigamente pensava ser impermeável. Vinte anos de Suíça fizeram-me ver que não sou.

Gosto das pessoas do norte de Portugal e do clima do Sul.

Não sei como compatibilizar isto tudo. Vou deixar o tempo fazer o seu trabalho, que é tomar decisões por nós quando nós não as tomamos a tempo. 

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Acabei por jantar a bordo. O Liv, aonde me preparava para comer um bokit, está fechado às segundas, Fiz um molho de tomate, juntei-lhe pedaços de um resto de frango que tinha no frigorífico, precedi-o de e acompanhei-o com um planteur maison, pus a Pietra Montecorvino no Youtube e ecco, signora, só me falta lavar a loiça.

Conheço muita gente que detesta a tarefa, para mim nobre, de lavar o que ficou da refeição. É um momento de calma e de reflexão, como o sábado antes das eleições com a vantagem de ser depois. Pode reflectir-se sobre o que havia a mais ou a menos, sobre o que nos trouxe aqui, sobre o que nos levará alhures, sobre - até - aonde será esse alhures.

Não se pode dizer que não gosto desta indefinição geográfica. Gosto. Descobrir uma terra é como descobrir uma mulher, com a vantagem de haver mais terras do que mulheres (pelo menos para mim). Só me falta uma coisa: um lugar para os meus livros. Nunca, até hoje, me ocorreu pensar que os livros são - ou podem ser - uma âncora, um ferro em linguagem de mar. Estar fundeado, expressão que um terráqueo traduziria por estar ancorado, para mim vai ser estar livrado. A minha casa será aonde os meus livros estarão. E aonde está a minha língua, também. Nada de interpretações lascivas, por favor.

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À Montecorvine segue-se uma dessas misturas do you tube. Começa bem, com a Eleni Karaindrou, continua igual com o Kevin Ayers, dali passa para a Evanthia Reboutsika. Não há solidão que resista a um fluxo constante de boa música, rum e alísios.

O espelho e as dúvidas

Tenho sessenta e seis anos e tenho andado a leste (e a oeste, a norte e a sul) desde que me conheço. O meu Pai tinha razão quando me acusava de "cultura livresca", de falta de contacto com o mundo real. (Ele tinha sempre ou quase, verdade seja dita.) O Facebook, para além de ter aumentado exponencialmente os meus conhecimentos de futebol recentrou-me os pontos cardeais (há dezasseis anos não sabia quem era o Ronaldo, por exemplo. Hoje sei e até o reconheço nas fotografias). Tenho um pouco menos a sensação de viver num "planeta paralelo" (aspas porque cito a minha filha).

Mas esta sensação é renovada todos os dias. Hoje aprendi, por exemplo, que há vestidos para morenas - e portanto para loiras, ruivas e acastanhadas, suponho.

Este conhecimento veio-me de uma senhora que percebe imenso de roupas e modas. Eu, cujo guarda-roupa de Verão consiste, integral e exclusivamente, em dez pólos brancos da Zara, C&A e - o último que me resta, o que prova que sou um rapazinho poupado - da Walmart e quatro calções azuis da Napapijri (comprados nos saldos, apresso-me a esclarecer) fico banzado. 

Será que é a combinação de cores adequada para o meu cabelo? Para o meu corpo sei que não é, mas isso não é difícil: nem nu me adequo ao meu corpo, quanto mais vestido. O Facebook, além de me ensinar coisas, faz-me pensar. Coisa essa de que não me queixo, claro. Toda a gente sabe que o cérebro, tal como o fígado e os bíceps, é um músculo. Quanto mais trabalham mais se fortalecem.

Devo começar a olhar para o espelho, tarefa enfadonha s'il en est. E de que, entre nós, duvido muito seja capaz.

10.3.24

Deve estar a gozar comigo

Debruço-me por vezes sobre o sorriso das pedras do caminho. Nada de especial: vou a andar e sem querer - sempre sem querer - dou um pontapé numa pedra.

Em resposta, ela provoca-me uma dor muito forte no pé e sorri-me abertamente. 

9.3.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 09-03-2024

Sou pela simplicidade. É preciso ser simples. Amar coisas simples: um almoço reduzido em St. Anne (La Cour Créole, que aconselho vivamente) passeio de bote com o T., caril de camarão ao jantar, a bordo (tenho caril até à próxima glaciação), cerveja e DV no poço a ver passar o cortejo de luzinhas verdes dos táxis. É sábado e os clientes dos charters não param de chegar. Parece uma procissão. Tenho sorte: no meu pontão só há uma empresa e nem sequer é das maiores. O horroroso barulho dos sacos com rodas nas madeiras - esta gente vei para um barco como se fosse para um hotel - não dura muito. O último grupo que chegou deve ser polaco. Era pelo menos do Leste. Sempre houve muitos aqui, não sei porquê. 

Agora basta deixar o dia acabar, simplesmente (não sei se deva pôr uma vírgula entre acabar e simplesmente.) Vai acabar: lavar a loiça, beber o resto do planteur que comecei antes de comer, pensar que daqui a duas semanas estarei na minha amada Palma, lembrar-me de que posso emigrar de tudo menos da língua. E do mar, objectivos contraditórios: o meu mar recusa-se terminantemente a falar português. 

Há duas coisas que o impedem: a preferência que os portugueses têm pela ignorância, pensando (erradamente, claro) que é mais barata do que o saber; e a que têm pelo que é barato pensando (erradamente) que o barato é mais barato do que o caro. Não é. É muito mais caro.

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Chove de novo. Este ano está insuportável. Apetece mandar o Niño para o inferno dos climato-histéricos explicar-lhes que fascismo é isto: chuva e mais chuva. Vá lá que hoje não choveu durante o dia. E explicar aos ditos histéricos que isto não tem nada a ver com o clime. Tem a ver com a meteorologia. São duas coisas diferentes, se por acaso, como o cu e as calças do velho dito português.

Pergunto-me como vai ser a travessia. Há dois anos foi completamente atípica e não houve El Niño. Este ano posso levar Iridium e Starlink e tudo isso, mas não estou muito para aí voltado. Continuo a pensar que os custos e os inconvenientes não compensam as vantagens.

De como a passagem de táxis com a luzinha verde acesa no tejadilho me traz à memória uma citação de Emile Cioran e alguns pensamentos lúgubres

«Les abouliques, laissant les idées telles quelles, devraient seuls y avoir accès. Quand les affairés s'en emparent, la douce pagaille quotidienne s'organise en tragédie.» No lugar de affairés podemos pôr políticos par souci de clarté e este aforismo - de longe, um dos meus favoritos de Cioran - prova uma vez mais, como se fosse necessário, a justeza de visão, a pontaria do homem.

O curioso disto, claro, é ver que até a noção de entropia varia com o ponto de vista. Para o idiota do ou dos políticos que quiseram acabar com os taxico (e conseguiram, infelizmente. Sobreviveram pouquíssimos e há cada vez menos) esta evolução é neguentrópica. É sinónimo de ordem, de «qualidade» (aspas porque é irónico). Para uma pessoa sensata, a doce desordem do antigamente era mil vezes mais bonita.

Todos nós, suponho, chegamos a uma idade em que sentimos que o mundo que conhecemos, amámos e de certa forma ajudámos a fazer nos aponta, gentilmente, a porta da rua. No seu afã de prolongar a vida a medecina moderna enganou-se de alvo.

8.3.24

Figuras da linguagem - antítese

Os meus dias estão cheios de um imenso vazio de ti.